sexta-feira, 25 de junho de 2010

O CURIÓ - PARTE IV

Edgard Osmar de Carvalho




Canto Super Clássico - Linha de Canto Ana Dias



>Considerações preliminares



Há mais de três décadas iniciei o aprendizado do canto dos curiós Ana Dias, Xodó e Patrício. No período anterior a 1970, tive a convivência com os curiós mateiros oriundos, na sua grande maioria, da Alta Paulista, tais como os do Rio do Peixe, Lambari, Batalha etc., além de alguns vindos de outros Estados, principalmente Mato Grosso. Portanto, desconhecia aqueles cantos que vieram formar o super clássico, da linha de canto do Ana Dias. Contudo, em 1971, com os lançamentos dos discos selo vermelho, laranja e marrom, comecei, com alguns amigos da região de Tupã, a conhecer o canto praia. O aprendizado foi feito de forma grosseira pois, apesar de ouvirmos os cantos daquelas gravações, não tínhamos ninguém com conhecimentos suficientes para orientar-nos, já que eram cantos imperfeitos, cortados, sem entrada, na sua maioria incompletos. Faltava o contato com os curiozeiros experientes dos grandes centros, como São Paulo, Campinas, Piracicaba, Santos, Ribeirão Preto, Bauru etc. A comunicação era difícil, inclusive as viagens. Apesar disso, na década de 70, tive a oportunidade de conhecer o primeiro Curió Praia Grande, adquirido por um amigo de Tupã. Pássaro esse de nome Porco, oriundo do litoral paulista, excepcional repetidor. Nessa época, já tinha iniciado as primeiras tentativas para a criação em cativeiro, sendo meu primeiro curió efetivamente criado e nascido em cativeiro - o Soberano - pai de todos os hoje existentes, adquirido ainda pardo.



>Fase do aprendizado



As comparações do canto praia grande, cantado pelo curió Porco e o canto do Ana Dias foram inevitáveis. Para melhor assimilação do canto deste último, prendíamos o disco com o dedo, na tentativa de ouvirmos melhor as notas. Não existia equipamento com tecnologia que possibilitasse alterar a frequência, repetir notas isoladas, compará-las, identificá-las com precisão, como é feito hoje via computador. Mas, mesmo assim, usando aqueles equipamentos e aqueles discos, conseguimos fazer alguns pardos, como o Melodia, ótimo quando pardo, Charmoso, Dominó, Milionário, um selo verde, até hoje lembrado por aqueles que o conheceram.


Apesar da carência de comunicação com os grandes curiozeiros da época, fazíamos progressos pela dedicação e amor, além da admiração pelo canto do curió.



>Fase de finalização de aprendizado



Com minha mundança para Campinas e conhecendo o Luiz Tristão, grande conhecedor do canto do curió, começamos a somar aos nossos conhecimentos anteriores, informações importantes. Esse amigo foi professor também de vários outros companheiros que hoje se apresentam como conhecedores e de boa competência. Apesar dessa iniciação, não me impedia de apresentar, quando achava estarem prontos, e sempre com sucesso, alguns pardos que se mostraram realmente bons, como Surpresa, São Paulo, Águas de Março (este oriundo de Tupã, mas trazido ainda sem muita definição de suas qualidades). Foi também um período de confirmação, que o básico ou o conhecido nos grandes centros já havia sido absorvido no passado, uma vez que lá, como aqui, dependíamos dos discos antigos e dos nossos ouvidos, que demonstraram, com o passar do tempo, terem sido incompetentes para uma análise correta dos sons emitidos pelos curiós.


Nessa época possuía um pardo de nome São Paulo, curió de um samaritá, selo marrom antigo, a meu ver de canto completo, sem falta de notas. Fiz uma gravação do seu canto, selecionando os melhores, pretendendo tocá-la para os futuros pardos, pois estava vendendo o São Paulo. Convidei um amigo, talvez o maior conhecedor, na época, do canto do curió, para ouvir a gravação. Ouviu com atenção várias vezes, sentenciando no final: "Não toque essa fita para os pardos. Falta uma nota no canto. Depois do segundo Quim-Quim." Não explicitou qual nota era, mas constatou a sua falta. Hoje, usando o computador, examinei aquela fita, que apesar dos anos decorridos, permanecia no meu arquivo. Constatei que não falta a nota. Ela é tão marcante e audível como no disco selo marrom. A pergunta que faço é o que teria levado a esse engano ? É o mesmo desconhecimento e desencontro que perdurou até os dias de hoje, com essa mesma nota e com as notas de preparação. Somente passaram a ser ouvidas ou percebidas depois que algum equipamento eletrônico do presente detectou a sua existência.



>Era moderna



As imperfeições das gravações do passado do curió Ana Dias começavam a ser sanadas a partir da década de 80 por alguns curiozeiros, principalmente criadores que deslumbravam a possibilidade de montar fitas emendando os cantos completos existentes naqueles discos de vinil. Vários trabalhos estavam acontecendo, até que surgiu um trabalho realmente pioneiro e de qualidade: o disco selo prata em comemoração aos 30 anos de um Mestre, lançado pelo amigo Valter Moretti, a quem o canto Ana Dias super clássico deve tudo.


Neste disco, houve a primeira oportunidade de um curiozerio conhecedor em nortear as cantadas ali gravadas, com integração entre letra e música; regular o andamento de cada canto, ou seja, a sua duração; atribuir à música uma tonalidade uniforme; deu-lhe ritmo, ou seja, constância; e, finalmente, melodia, composição musical harmônica. Algumas dessas qualidades não observadas nos discos originais, uma vez que o Ana Dias é do início da década de 70, época das gravações estudadas, e tratava-se inequivocamente de um pássaro em aprendizado.


O amigo Moretti fez mais, certamente auxiliado por alguns companheiros curiozeiros que, como ele, conheciam ao vivo o canto dos pássaros nativos possuidores das notas principais, que vieram a ser formadoras do canto super clássico, notas ou 'palavras', constituídas de sílabas, registradas expressamente na contracapa do disco de comemoração, cantadas ou 'FALADAS' por essa ave compositora que foi o Ana Dias.



>Quim-Quim



Grande repetidor do seu canto original, foi com o tempo aperfeiçoando as notas do canto Praia Grande. Posteriormente, como inteligente e bom cantor, foi incorporando as notas "Quim-Quim" (virada) e a batida de praia "Tué-Tué-Tué". Formava-se, assim, um curió Praia Grande.


Mas foi além, assimilou de outros curiós, também do litoral paulista, a nota samaritá "Uí-Uí", assim como a alteada do Juruba. Todas essas notas, com exceção da alteada, foram citadas e registradas na capa desse disco de comemoração. Quanto à última, a alteada do Juruba, a sua grafia não foi mencionada, mas houve a afirmativa de que ela 'assemelhava-se à nota samaritá'. Só para lembrar, assemelhava-se ao "uí-uí". Esse registro, esse depoimento expresso do amigo Moretti, é um fato histórico que não pode ser esquecido e nem contestado ou modificado, mesmo com alegações de que alterações efetivadas facilitariam o aprendizado dos filhotes.


Apesar de haver delineado o som da alteada, não fez nenhuma referência às notas de preparação, que eram em número significativo, pois já nos discos selos vermelho, laranja e marrom, eram compostas de três grupos, com seis notas, quatro das quais repetidas na entrada, ou como denomino, primeira parte. Por que teria isso acontecido ? Tenho plena convicção de que não foi falta de competência, pois eram profundos conhecedores dos cantos da época e das suas mais diversas variações, o que só esse detalhe já os qualificava, mais do que os nossos ouvidos, hoje, que convivemos com uma única linha de canto.


Creio que a razão teria sido a mesma deficiência do ouvido humano que não permitia percebê-las. A alteada era ouvida, pois é uma das notas principais, formadoras do canto super clássico, somente não puderam definir sua grafia.



>Ritmo



Todos nós sabemos que o canto de um pássaro canoro é uma música que contém andamento, ritmo, melodia e harmonia etc., mas que também possui uma letra, que são as sílabas ou 'palavras', aprendidas, criadas e desenvolvidas pelo pássaro ou seus antecedentes. Se torna imprescindível que haja uniformidade da 'pronúncia' da sílaba com a nota musical a ser emitida. Há casos de regresso, filhos que não conseguem aprender o que seus pais cantam e de progressos, exemplares que são melhores que seus antecedentes. Assim foi o curió Ana Dias que, retirando notas importantes de outros semelhantes, criou um canto maravilhoso. Digo mais, não só aprendeu como criou, pois introduziu as notas de preparação, afim de que seu organismo conseguisse emitir as principais, dando harmonia à melodia da música. Foi além, criou um grupo de sílabas (notas) ou palavras; juntou o "Quim-Quim" da virada, com a alteada do Juruba, portanto, compondo um novo grupo, totalmente diferente dos originários de seus semelhantes. A meu ver, esse "Quim-Quim", influenciado pela alteada, transformou-se em "Tim-Tim".


Dessa maneira, não é admissível que se queira, atualmente, introduzir novas notas ao seu canto. O canto super clássico é aquele dos discos de 1971, canto esse melhorado com a qualificação das notas, regularidade das cantadas, repetição etc., constante do disco de comemoração aos 30 anos de um Mestre. Momento, inclusive, em que se deu pela primeira vez a classificação de "Canto Super Clássico" linha Ana Dias. Tudo que surgir modificado, que gravações ou curiós cantando, é outro canto, não se trata da linha Ana Dias. Espero que novos cantos, alguns já com bastante divulgação, consigam nos convencer da sua beleza, como foi o Ana Dias.


Além do lançamento do disco selo prata, que se trata do marco inicial de uma nova fase de aperfeiçoamento do canto Ana Dias, fez mais o amigo Moretti. Sempre preocupado na divulgação e qualificação, sem falar na preservação desse canto, lançou em março de 1993, trabalho esse apreciado por três outros amigos, profundos conhecedores do canto desse pássaro, um 'folhetim' historiando e descrevendo, sílaba a sílaba ou 'nota a nota', a composição do canto do Ana Dias. Inclusive, fazendo referência pela primeira vez às notas de preparação. Apesar da qualificação das pessoas envolvidas, ouso, modestamente, discordar daquelas colocações que detalharei ao comentar os estudos e pesquisas realizadas nesses últimos quatro anos.



Continua na próxima edição !



Fonte: Revista Pássaros. Ano 10 - nº 49, pp. 12-16


2 comentários:

  1. Meu Deus quanta informação!isso é o máximo.obrigado e parabéns.

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  2. Evaristo Ângelo Batistela27 de junho de 2010 às 02:56

    Pêcego.

    Ao postar neste blog, matérias extraídas da Revista Pássaros de autoria do senhor Edgar. O. de Carvalho, está prestando serviço inestimável à classe passarinheira, principalmente aos criadores de curiós. Estou fascinado com os conhecimentos demonstrados pelo senhor Edgard. Ele sabe tudo sobre os avinhados e sobre o canto PGC Ana Dias. Demonstra ser um apaixonado pelo que faz e, com humildade, amor, dedicação e perseverança nos transmite o que aprendeu, no transcorrer de inúmeras décadaa, na lide diária de um verdadeiro passarinheiro. Deus que ilumine e dê vida longa ao senhor Edgard, como também ao casal Antônio e Mônica. Agradeço, do fundo do coração, por estas aulas ministradas, graciosamente, sobre o nosso pássaro preferido.

    Abraços;

    Evaristo/Capivari-SP

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